A maior alegria do POM

Se, por um instante, o céu se abrisse sobre as nossas cabeças e, lá do alto, chovessem rosas e cristais, eu não ficaria mais deslumbrado. Do POM 2023, que ADFA e COALA organizaram em São Bartolomeu do Outeiro, entre sábado e terça de Carnaval, esta é uma das imagens que guardarei para sempre. Era cerca do meio-dia quando Miguel Canana veio ter comigo a perguntar se, tendo feito “mp” na primeira etapa, era possível, no fim, estar em 3º da geral. Claro que sim, disse eu, se a classificação é por pontos, podes em apenas três corridas ter pontuado mais do que outros conseguiram em quatro.

Haviam de ver. Os olhos, a boca, todo o rosto e ele todo explodiram num derrame de felicidade que não sei descrever. De repente, o mundo, com suas guerras, fome e cataclismos, ficou lá muito longe. Só existia este momento mágico em que um tesouro que ele julgava perdido lhe voltava de novo às mãos. Não pude ficar para a cerimónia de entrega de prémios, mas consigo mentalmente vislumbrar o sorriso luminoso com que ele há de ter subido ao pódio, desarmando as nossas angústias de adultos com a alegria contagiante dos seus 13 anos. Obrigado, Miguel.

Antes de encarar os dados objetivos desta magnífica jornada que reuniu dois mil praticantes, permitam que me detenha ainda um pouco no domínio das notas pessoais. É que nestes mapas de São Bartolomeu do Outeiro experimentei, nos últimos 20 anos, tantos instantes de euforia e frustração, que não hesitaria em colocá-los na vintena de terrenos que, um pouco por toda a Europa, mais contribuíram para fazer da orientação a grande paixão da minha vida.

Vänskap genom sport

Tenho diante de mim um exemplar em papel da Final A masculina do 34º Campeonato Mundial Militar, disputado em outubro de 2001 nos mesmíssimos terrenos onde corremos agora. Os Men Elite, que no domingo se bateram com 18,8 km e 510 metros de desnível, vão gostar de saber que esse percurso da nata fardada tinha a distância de 16,2 km com 370 de desnível. E a pernada maior, se a régua não engana, media 2865 metros.

Consigo encaixar três das minhas peças nesse puzzle de há 22 anos. Só a do 3º dia, com partida mais distante, se bem se lembram, é que ficou ocultada sob uma grelha de informação. A título de curiosidade, registo os nomes dos cartógrafos: trabalho de campo de Vladimir Pantsir e Leonid Malankov (mar/abr 1998) e Armando Rodrigues (jul/ago 2001); desenho de Valentin Pravilo. Os mapas atuais, já todos sabem, são de Alexandre Reis. Há algumas cercas novas e novos caminhos também. E a cartografia foi modernizada, resultando numa carta bastante mais navegável.

No mapa do “Model event” de 2001 aparece, em letra muito sumida, a seguinte divisa: “Amizade através do desporto. Friendship through sport. Amitié a travers du sport. Freundschaft durch sport.” O uso dos quatro idiomas fazia certamente parte do protocolo militar, mas hoje bem podíamos acrescentar “Vänskap genom sport”, já que 700 participantes deste POM vieram dos países nórdicos.

Francisco Pereira e Amadeu Pinto

A minha ligação a estes terrenos não cumpre critérios de fidelidade, mas vem já de 2002. O Francisco Pereira, que era na altura a alma do CIMO e uma das figuras mais relevantes da orientação a nível nacional, sabendo do meu entusiasmo pela modalidade, ofereceu-me o mapa do Mundial Militar. Não ganhou bolor nos meus arquivos.

Na primeira viagem ao Algarve, fiz um desvio a nascente e lá fui moer os músculos, o cérebro e os olhos (escala 1:15.000) nessas paragens. Sem grande demora, voltei duas ou três vezes e, numa delas, encontrei montado um percurso de competição. Aqui, a memória pode trair-me, talvez este episódio tenha ocorrido noutro cenário, mas julgo que não. Tratava-se de uma prova ou de um treino militar. Ainda ajudei a recolher os pontos, com a aprovação do coordenador da atividade, o nosso amigo Amadeu Pinto, que, soube neste fim de semana, ainda se mantém ativo na BTT.

Perdoem mais este atalho, mas vejam como o mundo é pequeno. Uma pessoa da família perdeu o telemóvel na segunda-feira à saída do estacionamento em São Bartolomeu do Outeiro. Estávamos alojados à beira de Cuba. Depois de vários telefonemas e viagens de vai e torna, chegámos a uma pista que nos conduziu ao posto da GNR de Viana do Alentejo. Já na posse do aparelho, fiquei um bocadinho à conversa com o jovem agente que estava de serviço. “Acho que a sua cara não me é estranha. O senhor não vive no Alvito?”.

Os amigos que estão a ler este arrazoado sabem que nunca vivi no Alvito, mas também imaginam que eu não iria perder esta ponta da meada. Vêm à conversa os nomes do Joaquim Patrício e do Jean-Charles Lalevee. E, já nem sei porquê, falei dum companheiro da orientação que era barbeiro na GNR. “Quem? O Pinto?”, pergunta-me o jovem. E eu: “Esse mesmo, o Amadeu Pinto”. Então ele saca do seu telemóvel e mostra-me uma foto do Amadeu equipado a rigor, com capacete e tudo. É seu colega de equipa em algumas aventuras de bicicleta. Dois dos meus sobrinhos, que ainda não fizeram 30 anos e tinham ido comigo ao posto da GNR, nem queriam acreditar!

ADN: 4º lugar entre 420 equipas

Esbanjei a maior parte das munições em prolongados ataques periféricos. Agora, tenho de apontar ao centro com limitados disparos cirúrgicos. A verdade, porém, é que todos sabem onde consultar os resultados: https://pom.pt/2023/pt/live-info/

Seguem, por isso, os destaques da competição, resumidamente despejados sem ordem nem propósitos de exaustão.

A nossa associação, ADN Sesimbra, classificou-se em 4º lugar entre 420 equipas, embora tenha de se dizer que boa parte delas representava clubes estrangeiros que quase só trouxeram veteranos. Dos 2014 inscritos, 972 eram de escalões a partir de H/D50.

No núcleo duro da competição, os louros vão para o COC, que se impôs a duas formações finlandesas, Kalevan Rasti e Lynx. Logo a seguir surgimos nós, à frente do .COM e GD4C, agora listando apenas os emblemas portugueses. Neste alinhamento, é surpreendente o 11º lugar do CMo Funchal, que deixou para trás CPOC, CAOS, Amigos da Montanha e OriMondego. O sucesso dos madeirenses, que trouxeram apenas 21 atletas, deve-se muito à categórica vitória de Tiago Aires em H40 e aos resultados de Romão e Miguel Silva em Homens Elite. Aires, com quatro vitórias em quatro etapas, deu a Portugal o único triunfo em mais de 30 escalões de competição, não incluindo neste rol as classes de formação, os escalões B e os superveteranos sem concorrentes nacionais.

Com 38 participantes, o ADN Sesimbra foi dos clubes mais representados neste POM, logo atrás do COC (42 inscritos) e OriMondego (40). Boas delegações também do .COM e do Agrupamento de Escolas JBV, de São Brás de Alportel.

Dada a poderosa concorrência de estrangeiros, não luziram como de costume no pódio os atletas de Sesimbra. O único medalhado foi Miguel Canana (M14), que teve honras de abertura neste texto. Mas contámos, ainda assim, com dois prestigiantes 7ºs lugares entre os jovens, Miguel Manso em M18 e Leonor Ferreira em W18, e um 6º lugar nos veteranos, Manuel Dias em M70. Qualquer dos três foi o melhor português no seu escalão.

Falta explorar os escalões principais: ME e WE. Quinta-feira à noite, ainda em Lisboa e com a mala por arrumar, a pouco mais de 12 horas da prova em Santiago do Cacém. Pequena tragédia: OriOasis indisponível, sem acesso aos resultados. Fica a promessa: se escrever sobre o troféu Costa Alentejana (24-26 fev), guardo dois parágrafos para a prestação das Elites neste POM. Então se fará justiça ao desempenho do nosso Vasco Mendes e dos outros mais portugueses que tiveram quatro dias de luta acesa com alguns grandes vultos da orientação mundial.

Uma última notinha neste capítulo. Escutei um ou outro reparo a pormenores da organização. Chegou a haver mais de cem pontos no terreno e parece que numa das balizas não havia estação eletrónica; estava a estaca, o prisma e o picotador. Um deslize sempre pode acontecer, mas não me venham falar de pontos mal marcados. Era de luxo a equipa dos percursos. Sem demérito para os não nomeados, e sob a batuta de Mário Duarte, alinharam na montagem jovens como Luís Silva e Ricardo Esteves e veteranos como Jorge Correia e Santos Sousa. Têm razões para estar satisfeitos os clubes de Jacinto Eleutério e Augusto Almeida.

Dos 4 aos 90 anos

A expressão dos 8 aos 80 peca aqui por defeito nas duas extremidades do segmento. Tivemos, pelo menos, três participantes nascidos em 2019, ou seja, que fazem 4 anos neste 2023. São todos portugueses e já federados: Eduardo Miguel, do Ori-Estarreja, com o peitoral 7008; Dinis Ehrhardt, do Amigos da Montanha, 7086; Madalena Silveiro, do CAOS, 7137. No extremo oposto, dois estrangeiros, nascidos em 1933: o sueco Peo Bengtsson, que ainda se bateu com os concorrentes de H85, e o suíço Othmar Sauter, único participante em H90. Peo Bengtsson é uma lenda viva da orientação. Mais recentemente, venceu os Mundiais de Veteranos em 2015 (sprint) e 2019 (distância longa). Mas pode dizer-se que já “toda a gente” o conhecia em todo o mundo onde se pratica este desporto. Espreitem a Wikipedia. Membro da seleção sueca em 1964, organizou o primeiro O-Ringen em 1965 e divulgou a modalidade como ninguém nos últimos 60 anos. Promoveu viagens de atletas nórdicos a imensos países onde não se conhecia esta atividade; chegavam, faziam mapas elementares e, em coordenação com associações locais, atraíam potenciais praticantes. Em sentido inverso, convidava atletas estrangeiros para irem à Suécia receber formação e participar em eventos de elevado nível técnico. Conheci Bengtsson em 1997 nos Clinics de Umea, na Suécia, e tive o prazer de acolhê-lo agora em São Bartolomeu do Outeiro para uma ginjinha e uma fatia do bolo de aniversário da Rosário.

Manuel Dias

Fotos de António Rusga